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quinta-feira, 30 de agosto de 2018

"THE AND"

IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro – AICT)
(Especial)

Isabel Cavalcanti no monólogo "The  And".
Direção de Isabel e
Claudio Gabriel

"Ah! Os Dias Felizes!" Ela sempre está à procura de sossego! (Foto Mauricio Maia)




    "THE AND", com direção de Isabel Cavalcanti e Claudio Gabriel. A tradução de textos de Samuel Beckett, e o caminho desta personagem interpretada por Isabel Cavalcanti, nos levam a ter uma visão do interior das pessoas que nos habituamos a ver morando nas ruas. Sempre nos perguntamos o que as leva a tal situação, e é claro que sabemos o que as leva a tal situação. Mas nunca, antes de assistir a esta peça, as entendemos como agora, com um simples olhar. Antes procurávamos apressar o passo para fugir ao espetaculo que nos era dado à revelia. Hoje tentamos entender a loucura da sociedade que gera tal anomalia. 

   A situação permanece. Sempre culpamos o “capitalismo selvagem”. Porém, quando nos deparamos com alguém como a personagem do THE AND, ficamos pensando sobre a vida que ela tem que levar. A personagem, vivida por Isabel Cavalcanti, nos leva à indagação sobre estas pessoas morando na rua. Além de termos a impressão de que conhecemos as suas almas, constatamos que entre estas personagens pode estar uma alma ingênua, uma sensível vitima de seus predicados... E constatamos ainda que, para viver decentemente temos que ser insensíveis. Mas isso está ficando um pouco à la Machado de Assis... Quem sou eu? Mas Machado entra na historia...
    
    O espetáculo nos faz pensar na situação das pessoas de rua. E então passamos a acreditar na falta de sorte da personagem, na sua ingenuidade, sua falta de defesa. E buscamos um AND ... e vamos encontrá-lo na sensível  Gelsomina, também uma personagem vítima de seus predicados. A heroína de “La Strada”, de Fellini, é uma frágil que se deixa levar pela sua inadequação para a vida. Mas Gelsomina se rebela, o que não acontece com a nossa personagem! São muitos os AND... mas os THE, facilmente identificáveis, são como os “vagabundos” de Beckett, sempre procurando entender o que lhes acontece, e sempre esperando algo que lhes modifique a vida!

     A nossa heroína tem um pouquinho dos dois, mas pode seguir ainda em sua procura, ad infinitum... Podemos reconhecê-la em diversos personagens, e podemos “ver”, através dela, muitas situações que antes nos passavam despercebidas! Sim, e esta experiência teatral é o desnudamento da alma de um ser que vive no abandono. Muitos já tentaram compreender este abandono radical, este renunciar a tudo, dos mendigos. Muitos pesquisadores da alma humana já tentaram, para compreendê-los, seguir o caminho dos filósofos. Será uma filosofia de vida, “este se negar”? Há um momento, no texto, em que a nossa heroína filosofa. Carregados de filosofia, estes “filósofos modernos” têm força para criticar o que os cerca. Há um importante momento na peça em que a nossa personagem constrói para si um refugio (um barril?). Há um bote abandonado, e ela descobre que não será mais surpreendida por bicho ou gente!
  
     Trata-se, mais uma vez, do AND na colocação do texto. Esta é a nossa leitura. Isabel Cavalcanti criou um texto que aceita várias leituras... e o AND circula, desenhando manifestações! Ele é o acréscimo, em nossa cultura. Temos Beckett e seus vagabundos: este é o THE, e temos também este ser ingênuo que é a personagem de olhar encantado e adormecido pelas negações, e que é acolhida por um outro olhar.  
Quem é este ser?

     Com Samuel Beckett, a autora vai deixando pistas pelo caminho... “aqueles” sapatos becketianos, aquelas roupas, aquele caos... e um de nossos cenógrafos preferidos – Fernando Mello da Costa – nos apresenta, desenhando a cena com seu olhar apocalíptico, nos apresenta o solo de Isabel, o jogo de Isabel, e acabamos por perceber os mendigos em sua volta, os mendigos filósofos das grandes cidades! E acabamos por perceber o clochard de Paris! Este AND... nos faz lembrar os estudantes da capital francesa, de como eles acompanham os mendigos, os "inadaptados, que vivem sem trabalho e sem domicilio", de como os estudantes sentam-se nas ruas a seu lado, e conversam com eles... Os jovens querem descobrir o que há dentro do cérebro destes seres distantes da sociedade! Mas não basta, para eles, os jovens, somente imaginar...

     Serão estes mendigos, incluindo a nossa personagem, alguma espécie renovada de Diógenes, morando em seu barril, procurando a luz, criticando a sociedade em que vive?
     
     A personagem criada por Isabel Cavalcanti também faz a crítica da sociedade atual e, tal como Diógenes, – ela procura o seu barril, para morar em um lugar onde as pessoas possam ficar sossegadas.

     E a personagem o encontra, transformando uma canoa abandonada em uma casa inventada por ela mesma, para lhe dar o aconchego tão procurado!    

      E como percebemos Isabel Cavalcanti, a atriz que personifica esta personagem? A atriz sai desta empreitada mostrando a sua grande sensibilidade. Desenhar uma renúncia, uma rejeição, algo que atormenta essa personagem tão excluída é, no mínimo, revelador. Passar  esta revelação para o público, na dimensão que a atriz da à personagem  é algo a ser respeitado. Não há tergiversação, não há princípio, nem há fim. A situação apresenta-se como sempre foi: uma poesia triste, melancólica, irreversível! (Muito raramente há um final feliz...). 

     Há uma cena em que a autora atriz consegue se sobrepujar. E esta cena  é a do porão, onde as pessoas, suas pernas, seus sapatos, passam, e ela se interessa pela vida daquelas pessoas que passam (meu Deus, já li esta passagem em  algum romance! Talvez seja em Dostoievski!). 

     Mais ainda: na sua ingenuidade e loucura, a personagem abre mão de sua segurança, para dar todo o dinheiro que lhe resta a alguém que se apresenta como detentora do poder, ou seja, como sendo a proprietária do porão em que a personagem passou a viver... em seu desejo de isolamento. Fabricamos a nossa própria vida – diz o principio aristotélico da tragédia – e podemos acrescentar: também fabricamos a a nossa própria loucura.


     Não é mais possível controlar a situação, e a nossa heroína cede ao seu destino. E ressurgem, neste momento, os sintomas da loucura... e este é um importante caminho para compreender o infortúnio desta personagem. Ela se entrega. Ela recebe os acontecimentos como algo que a assaltam, avassaladoramente.
     Isabel Cavalcanti vence com bravura todos os obstáculos colocados em seu caminho de atriz. Todos os obstáculos de sua personagem. E isso é o que podemos chamar de um grande desempenho.


     A personagem é acompanhada pela música de Fauré, na Direção Musical de Marcelo Alonso Neves, e temos assim, “casados”, um dos mais belos momentos do espetáculo, quando a mendiga enfrenta a sua falta de sossego, embalada pela música, a qual ela não escuta. Ela somente enfrenta os bichos (os piolhos) que a atormentam. Temos também a direção de movimento de Cristina Amadeo unida à direção musical de Marcelo Alonso Neves, tudo revelado pela mágica luz proporcionada por Renato Machado. E assim se transforma em beleza um momento tão revelador e desumano! 



     Temos também os figurinos, muito adequados, de Claudio Gabriel – o diretor desta obra tão bela – e de Isabel Cavalcanti. O design visual é de Sônia Barreto, e a tradução das citações de Beckett são de Isabel Cavalcanti. Com a  Produção Executiva de Ana Velloso e Vera Novello, da Lúdico Produções, o espetaculo desliza com perfeição.

     A idealização do espetaculo é de Claudio Gabriel e Isabel Cavalcanti. Podemos ver, na capa do programa da peça, uma alusão a “Dias Felizes”,  de Samuel Beckett (que ilustra também esta crítica), e no texto há várias citações do mesmo autor. Vale a pena conferir. Esta foi "A “Primeira Temporada do Espetaculo”. Ele irá voltar, brevemente. PRESTEM ATENÇÃO... E NÃO PERCAM! 


   

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