"O Banqueiro Anarquista", de Fernando Pessoa, direção de Fernando Lopes Lima. Em cena: José Karini e Peter Boos. Ensaios. (Foto Divulgação). |
CRÍTICA
TEATRAL
IDA VICENZIA
FLORES
(da
Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)
O Alfândega 88, grupo que ocupa o Teatro Serrador,
convida diretores de fora e também acolhe na direção os seus parceiros, além do titular
Moacir Chaves. Neste grupo não há hierarquias. Este "O Banqueiro Anarquista", texto de Fernando
Pessoa, é fruto do acolhimento de Fernando Lopes Lima, do Alfândega 88, na direção. Um único senão: os espetáculos da casa fazem rodízio constante, o que
deixa meio perdidos os que possuem agenda na esfera da crítica. Porém,
surpresas aguardam aos que escrevem sobre teatro, e algumas bem interessantes,
como é o caso deste Fernando Pessoa, uma leitura da sociedade e do espírito
humanos. O espetáculo revela-se intrigante, e, com toda a sua estranheza de
forma e conteúdo, nos faz pensar que o homem é um ser social essencialmente
solitário, apesar das aparências em contrário. O que sobressai, neste texto, é a
impossível conciliação entre o "pensamento impositivo" (qualquer
forma de organização política) e a liberdade.
O espectador deve atravessar
o extenso caminho da ironia - semeado pelo autor - para entender que só a
solidão salva: sendo a possibilidade do amor (outra "ficção social
burguesa", junto com o dinheiro), uma utopia. O discurso do anarquista
banqueiro é o de se opor a todas as "ficções sociais", a fim de estabelecer
a liberdade constante. Contraditoriamente, essa liberdade é inviável, pois
sempre haverá uma força impositiva (leia-se vinda de fora) para cerceá-la. Daí
pode-se concluir que a humanidade sempre necessitará de um comando superior que
a oriente. Há vários filósofos que contestam essa afirmativa, entre eles
Schopenhauer, que acredita no poder da arte como força propulsora da liberdade
(o personagem romântico, interpretado por Peter Boss chega a algo semelhante, sobre
a força da criação, em sua fala).
Essa travessia em
direção a impossibilidade total de sucesso a um regime político imposto é feita
com muita inteligência e humor. A verve do texto é muito bem sustentada pelos
atores: enquanto Peter Boss representa o romântico (irônico) que procura
entender o raciocínio ilógico de seu interlocutor; o anarquista que é banqueiro
(interpretado com fôlego e precisão por
José Karini) busca dar credibilidade a um caminho que vai desaguar no egoísmo
absoluto. O resultado do pensamento contraditório do banqueiro é repleto da
inquestionável "descrença do humano", uma característica do autor
(Pessoa), com a ressalva de que o "anarquista" não parece conscientizar
a sua descrença (o que torna ainda mais absurda a sua convicção). Podemos dizer
que vale a pena essa travessia ao imponderável. Mas deixemos as
peripécias da encenação e os excelentes desempenhos dos atores para a
apreciação do público. O espetáculo é dirigido com eloquência por Lopes Lima.
O único
estranhamento dessa direção é o tratamento clownesco dado ao "Poema em
linha reta", do heterônimo de Pessoa, Álvaro de Campos. O ator, Rafael
Mannheimer (que imaginamos estar representando o que seria um terceiro
"heterônimo" de Pessoa, o clown), trafega pelo cenário de Marcos
Saboya, repleto de livros - e um piano -, anotando não se sabe que ponderações sobre
o espetáculo, em seu bloquinho misterioso. Fica a impressão de que se trata de
uma crítica velada aos acontecimentos, aos críticos, e à plateia. Uma ironia
crítica.
Estamos em 1922, e
Lisboa vive a sua constante instabilidade política. A conclusão deixada pelo
autor é a de que não existe regime político ideal, sendo o homem um solitário
egoísta. Vale conferir. É muito interessante a maneira pela qual os atores vão
jogando, para o público, os acontecimentos, principalmente os ocasionais, acreditando
na inteligência de quem os assiste. Um bom exemplo é o grito à la Byron:
"O amor é a eterna inocência!"- dado pelo personagem de Peter Boos, intempestivamente,
ao deixar a cena através da platéia.
Ficha técnica: Autor: Fernando Pessoa;
Direção e Dramaturgia: Fernando Lopes Lima;
Direção Musical: Leonardo de Castro;
Iluminação: Aurélio de Simoni;
Cenografia: Marcos Saboya;
Figurinos: Kassandra Speltri;
Produção: Fernando Lopes Lima
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