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quarta-feira, 3 de julho de 2013

"O BANQUEIRO ANARQUISTA"

"O Banqueiro Anarquista", de Fernando Pessoa, direção de Fernando Lopes Lima. Em cena: José Karini e Peter Boos. Ensaios. (Foto Divulgação).



CRÍTICA TEATRAL
IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)  

O Alfândega 88, grupo que ocupa o Teatro Serrador, convida diretores de fora e também acolhe na direção os seus parceiros, além do titular Moacir Chaves. Neste grupo não há hierarquias. Este "O Banqueiro Anarquista", texto de Fernando Pessoa, é fruto do acolhimento de Fernando Lopes Lima, do Alfândega 88, na direção. Um único senão: os espetáculos da casa fazem rodízio constante, o que deixa meio perdidos os que possuem agenda na esfera da crítica. Porém, surpresas aguardam aos que escrevem sobre teatro, e algumas bem interessantes, como é o caso deste Fernando Pessoa, uma leitura da sociedade e do espírito humanos. O espetáculo revela-se intrigante, e, com toda a sua estranheza de forma e conteúdo, nos faz pensar que o homem é um ser social essencialmente solitário, apesar das aparências em contrário. O que sobressai, neste texto, é a impossível conciliação entre o "pensamento impositivo" (qualquer forma de organização política) e a liberdade.    
     O espectador deve atravessar o extenso caminho da ironia - semeado pelo autor - para entender que só a solidão salva: sendo a possibilidade do amor (outra "ficção social burguesa", junto com o dinheiro), uma utopia. O discurso do anarquista banqueiro é o de se opor a todas as "ficções sociais", a fim de estabelecer a liberdade constante. Contraditoriamente, essa liberdade é inviável, pois sempre haverá uma força impositiva (leia-se vinda de fora) para cerceá-la. Daí pode-se concluir que a humanidade sempre necessitará de um comando superior que a oriente. Há vários filósofos que contestam essa afirmativa, entre eles Schopenhauer, que acredita no poder da arte como força propulsora da liberdade (o personagem romântico, interpretado por Peter Boss chega a algo semelhante, sobre a força da criação, em sua fala).
     Essa travessia em direção a impossibilidade total de sucesso a um regime político imposto é feita com muita inteligência e humor. A verve do texto é muito bem sustentada pelos atores: enquanto Peter Boss representa o romântico (irônico) que procura entender o raciocínio ilógico de seu interlocutor; o anarquista que é banqueiro (interpretado com fôlego e precisão  por José Karini) busca dar credibilidade a um caminho que vai desaguar no egoísmo absoluto. O resultado do pensamento contraditório do banqueiro é repleto da inquestionável "descrença do humano", uma característica do autor (Pessoa), com a ressalva de que o "anarquista" não parece conscientizar a sua descrença (o que torna ainda mais absurda a sua convicção). Podemos dizer que vale a pena essa travessia ao imponderável. Mas deixemos as peripécias da encenação e os excelentes desempenhos dos atores para a apreciação do público. O espetáculo é dirigido com eloquência por Lopes Lima.
     O único estranhamento dessa direção é o tratamento clownesco dado ao "Poema em linha reta", do heterônimo de Pessoa, Álvaro de Campos. O ator, Rafael Mannheimer (que imaginamos estar representando o que seria um terceiro "heterônimo" de Pessoa, o clown), trafega pelo cenário de Marcos Saboya, repleto de livros - e um piano -, anotando não se sabe que ponderações sobre o espetáculo, em seu bloquinho misterioso. Fica a impressão de que se trata de uma crítica velada aos acontecimentos, aos críticos, e à plateia. Uma ironia crítica.
     Estamos em 1922, e Lisboa vive a sua constante instabilidade política. A conclusão deixada pelo autor é a de que não existe regime político ideal, sendo o homem um solitário egoísta. Vale conferir. É muito interessante a maneira pela qual os atores vão jogando, para o público, os acontecimentos, principalmente os ocasionais, acreditando na inteligência de quem os assiste. Um bom exemplo é o grito à la Byron: "O amor é a eterna inocência!"- dado pelo personagem de Peter Boos, intempestivamente, ao deixar a cena através da platéia.   
  
Ficha técnica: Autor: Fernando Pessoa;
Direção e Dramaturgia: Fernando Lopes Lima;
Direção Musical: Leonardo de Castro;
Iluminação: Aurélio de Simoni;
Cenografia: Marcos Saboya;
Figurinos: Kassandra Speltri;
Produção: Fernando Lopes Lima

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